Neste livro, resultado de um projeto de autoria na escola em que atuo, tive o prazer de poder incluir um conto sobre meu pai, nascido a partir de um texto que postei aqui!
Segue o conto:
A máquina de sonhos
- Foi nesta casa que passei toda minha infância e
adolescência, filha ...Nasci aqui!
- Podemos entrar?
- Não, moram pessoas estranhas aí, não será
possível entrar na casa, mas gostaria de levá-la para dentro de uma história
interessante...
- Mais uma das histórias que seu pai contava pra
você?
Meu
pai era um exímio contador de histórias, emendava uma na outra, interpretando,
dramatizando e colorindo com pincéis de muita criatividade! Um artista que
precisava se expressar e se fazer alegre para se fazer necessário e eterno para
todos que passaram por aquela rua, por aquela casa, por aquela máquina de
sonhos azul.
- Não, mocinha, vou contar uma história minha, sobre
ele ...vou contar uma história do seu avô, meu pai! Um senhor muito maluquinho,
acho que ele poderia ter sido o avô do Menino Maluquinho, sabe?
- Quero ouvir, mãe! Sou uma menina maluquinha,
né?
- Sim! Totalmente maluquinha, o Ziraldo escreveu o
Menino Maluquinho, pensando em crianças como você e seu avô! Tenho certeza!
- Conta logo, peraí... meu avô era criança?
- Claro que sim, ué!
Estranho
voltar a algo que parecia tão distante e ter a sensação de que foi
ontem...Quando levei minha filha para ver a casa onde passei boa parte da minha
vida, tive a sensação de voltar no tempo, de ter os joelhos ralados naquela
calçada, de senti-los arder, de ouvir o som dos sapatos de meu pai chegando em
casa... Não poderíamos entrar, a casa tinha sido vendida, mas não queria que o
assunto acabasse ali, queria contar à minha filha algo sobre aquele espaço,
aquele mundo que só pertencia a mim...
- Você sabe o que é uma máquina de sonhos?...
- Como assim?
- Era uma vez um homem com alma de menino e um
pouco velho que tinha uma máquina azul de sonhos, ele a dirigia todo orgulhoso,
pois era seu xodó!
Precisava
mostrar a minha filha o quanto havia herdado dele...
- Não ligava muito para coisas, assim como você,
adorava mesmo era a natureza, a terra, os animais e, principalmente,
passarinhos! Ele dizia que eu era seu passarinho no ninho, aliás! Nas poesias
que me escrevia em papéis de seda que embrulhavam os pães, sempre tinha
passarinho e eu era um deles! Ele até desenhava...Então, embora fosse uma
coisa, ele adorava a máquina azul de sonhos, pois ela era mágica!
- Seu pai fazia mágica, mãe?
- Não, exatamente ...seu avô tinha a máquina que
era mágica...sem ela, não sei se conseguiria...Ele fazia um milhão de coisas
com ela! Inclusive trabalhar! Ela era o que dava dinheiro para ele sustentar a
casa, com todo o necessário para vivermos. Mas não era só a minha casa que ele
supria com a máquina de sonhos que andava por toda a cidade. Ela fazia sobrar
para dividir com os outros da rua e de outros lugares que ele conhecia!
Quando ele ia chegando com a máquina, não dava
nem tempo de eu me aproximar para abraçá-lo, já havia uma dezena de crianças
pedindo:
- Tio, leva para dar uma volta? Tio, me leva
também? E eu, tio? Tio, tio, tio...
- Eu ficava olhando com muito ciúme e ele nem
reparava, achava que eu fosse como ele ...capaz de dividir... Depois eu dizia
que não achava certo aquilo todo dia, que os outros iam acabar quebrando tudo!
E ele respondia: “Se quebrar, conserta!” E eu ficava com a cara amarrada, ele
fingia que não via...mas, às vezes, dava uma baita bronca!
Como teve uma infância de muitas privações, meu pai achava que eu não
podia reclamar, pois alguém com uma infância sem fome e com saúde tinha motivo
de sobra para ser feliz.
- Lembro que com uma das crianças que entravam na
máquina ele era especialmente atencioso e até comprava balas pra ela!RRRRaiva!
Ele sabia o sabor preferido do pirralho e eu tinha certeza de que não sabia do
que eu gostava! Quanta injustiça, meu Deus! Eu pensava... Quando eu via aquilo,
ia como um foguete pra dentro e ficava de cara amarrada!
- Nossa, mãe, por que não falava pra ele?
- Nunca fui de falar, sabe filha, ficava
guardando a meus sentimentos com um certo prazer...difícil explicar...mas ainda
bem que algumas coisas eu não dizia, pois hoje morreria de arrependimentos...a
palavra dita não se apaga!
Meu
pai tinha um carinho especial com os mais pobres e necessitados do que nós, era
como se ele tentasse resolver algo difícil de sua infância, em que não era
assistido. Fazia aos outros o que gostaria de que tivessem feito a ele.
- Seu avô não usava a máquina só para diversão, sempre
que alguém passava mal, vinham pedir socorro, porque era um dos únicos da rua a
possuir um veículo e o único a possuir um veículo que era mágico, uma máquina
que virava ambulância e a todos socorria, nunca ouvi seu avô reclamar ou dizer
que não dava para levar. Ele tinha prazer em ajudar, dava para ver no rosto
dele, e daí eu não reclamava, ficava com vontade de ir junto e ajudar também.
Em uma noite, enfim, pude entender melhor um
monte de coisas que seu avô fazia e a grandeza que ele tinha! Aprendi também
que ele era encantado, profundo e por isso tinha o direito de ter uma máquina
daquelas! Nunca mais vi uma igual... Era um presente dos céus para ele poder se
divertir e fazer o que mais gostava: ajudar os outros, não importava se eram da
família ou não. Ele amava todas as pessoas, principalmente, as que o deixavam
falar e contar suas histórias e rir sozinho delas...
- Mas o que foi, mãe, que seu pai fez?
- Então... bateram palmas e gritaram o nome dele,
a voz soou angustiada, doída...Fui atrás dele e vi que era a mãe daquele garoto
de quem eu sentia ciúme...o das balas... Parecia que alguma coisa séria tinha
acontecido, ela o tinha nos braços todo molinho, parecia sem vida... Naquela
hora já senti um aperto bem fundo que eu não sabia o nome, mas hoje eu sei:
arrependimento.
- O que ele tinha?
- Não sei o que era exatamente, mas fiquei
sabendo pelos outros vizinhos que era incurável e que precisava de tratamento
contínuo, acho que tinha algo a ver com falta de açúcar no sangue, pelo que me
lembro... Daí, fui entendendo tudo!
Não me esqueço do ar de desespero dele ao ver
aquela cena, pegou o menino dos braços da mãe com todo cuidado e disse que ia
ficar tudo bem, colocou o menino na máquina azul de sonhos e saiu voando...
Chegou bem mais tarde, com ar cansado, mas ainda assim perguntou se eu queria
ouvir uma história... Respondi que sim, sem me importar com o cansaço dele,
pois queria era estar e contar com ele, assim como os outros.
Neste dia,
aprendi mais algumas lições que ele não precisou explicar: meu pai era um herói
e, como tal, não podia cuidar só de mim, tinha responsabilidades com todos os
que precisavam, gostassem ou não dele! Ajudava até os que o chamavam de
mentiroso... pessoas limitadas que não entendiam as verdades inventadas dele!
Aprendi o valor da caridade, do amor ao próximo, do desprendimento e do
exemplo. Aprendi o porquê de dizerem que um exemplo vale mais do que mil
palavras...
- Mãe, meu avô vivia pra lá e pra cá, não ficava
com você nunca?
- Seu avô era como um pássaro que deixava o
ninho, mas não se esquecia de voltar quando era preciso, sempre que podia me
levava para alguns voos também, mas preso em casa não conseguia ficar! Não
parava quieto, se quiséssemos estar com ele, precisávamos ir atrás, como todos
daquela rua.
- Queria que ele estivesse vivo ainda, mãe ... Seria
legal nós três juntos na máquina dos sonhos, eu ia pedir muitas histórias...
- Às vezes, sinto que ele volta para ver se está
tudo bem no ninho... e tenho certeza de que você seria uma das tripulantes que
ele levaria no compartimento da frente da máquina, pra ficar mais fácil de contar
todas as histórias que moravam nele e as que brotavam sem parar!
Um conto maravilhoso que deve ser compartilhado com os filhos e alunos pois trata_se de uma lição de vida, integridade, respeito e ética. Fantástico. Uma lição de vida. Parabéns Eleandra Lelli.
ResponderExcluirMuito obrigada, Rita Santos!
ResponderExcluirOlá, professora! Adorei este seu "espaço" que, tão graciosamente, divide conosco! Quando escrever a primeira história do meu livro (um projeto grande que ainda está "aqui"dentro da minha cabeça kkk) gostaria de publicar aqui para ter sua opnião!!! Abraços carinhosos!!! Bete (esposa do Vanderlei)
ResponderExcluirOlá, professora! Adorei este seu "espaço" que, tão graciosamente, divide conosco! Quando escrever a primeira história do meu livro (um projeto grande que ainda está "aqui"dentro da minha cabeça kkk) gostaria de publicar aqui para ter sua opnião!!! Abraços carinhosos!!! Bete (esposa do Vanderlei)
ResponderExcluirObrigada, gente!
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