sábado, 11 de outubro de 2014

Lançamento de Reticências, em 25/10


Poema de Estênio Machado, sobre Fingi, o sapo fingidor


Não quero engolir sapo. 
Quero comer pipoca de letras saltitantes.
Quero o cheiro das páginas recheadas, de curvas e retas da codificação.
Quero compartilhar da memória da menina. 
Quero tecer com outras histórias. 
Quero fingir que sou menino.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014


Neste livro, resultado de um projeto de autoria na escola em que atuo, tive o prazer de poder incluir um conto sobre meu pai, nascido a partir de um texto que postei aqui!

Segue o conto:

A máquina de sonhos                                                         

- Foi nesta casa que passei toda minha infância e adolescência, filha ...Nasci aqui!
- Podemos entrar?
- Não, moram pessoas estranhas aí, não será possível entrar na casa, mas gostaria de levá-la para dentro de uma história interessante...
- Mais uma das histórias que seu pai contava pra você?
            Meu pai era um exímio contador de histórias, emendava uma na outra, interpretando, dramatizando e colorindo com pincéis de muita criatividade! Um artista que precisava se expressar e se fazer alegre para se fazer necessário e eterno para todos que passaram por aquela rua, por aquela casa, por aquela máquina de sonhos azul.
- Não, mocinha, vou contar uma história minha, sobre ele ...vou contar uma história do seu avô, meu pai! Um senhor muito maluquinho, acho que ele poderia ter sido o avô do Menino Maluquinho, sabe?
- Quero ouvir, mãe! Sou uma menina maluquinha, né?
- Sim! Totalmente maluquinha, o Ziraldo escreveu o Menino Maluquinho, pensando em crianças como você e seu avô! Tenho certeza!
- Conta logo, peraí... meu avô era criança?
- Claro que sim, ué!
            Estranho voltar a algo que parecia tão distante e ter a sensação de que foi ontem...Quando levei minha filha para ver a casa onde passei boa parte da minha vida, tive a sensação de voltar no tempo, de ter os joelhos ralados naquela calçada, de senti-los arder, de ouvir o som dos sapatos de meu pai chegando em casa... Não poderíamos entrar, a casa tinha sido vendida, mas não queria que o assunto acabasse ali, queria contar à minha filha algo sobre aquele espaço, aquele mundo que só pertencia a mim...
- Você sabe o que é uma máquina de sonhos?...
- Como assim?
- Era uma vez um homem com alma de menino e um pouco velho que tinha uma máquina azul de sonhos, ele a dirigia todo orgulhoso, pois era seu xodó!
Precisava mostrar a minha filha o quanto havia herdado dele...
- Não ligava muito para coisas, assim como você, adorava mesmo era a natureza, a terra, os animais e, principalmente, passarinhos! Ele dizia que eu era seu passarinho no ninho, aliás! Nas poesias que me escrevia em papéis de seda que embrulhavam os pães, sempre tinha passarinho e eu era um deles! Ele até desenhava...Então, embora fosse uma coisa, ele adorava a máquina azul de sonhos, pois ela era mágica!
- Seu pai fazia mágica, mãe?
- Não, exatamente ...seu avô tinha a máquina que era mágica...sem ela, não sei se conseguiria...Ele fazia um milhão de coisas com ela! Inclusive trabalhar! Ela era o que dava dinheiro para ele sustentar a casa, com todo o necessário para vivermos. Mas não era só a minha casa que ele supria com a máquina de sonhos que andava por toda a cidade. Ela fazia sobrar para dividir com os outros da rua e de outros lugares que ele conhecia!
Quando ele ia chegando com a máquina, não dava nem tempo de eu me aproximar para abraçá-lo, já havia uma dezena de crianças pedindo:
- Tio, leva para dar uma volta? Tio, me leva também? E eu, tio? Tio, tio, tio...
- Eu ficava olhando com muito ciúme e ele nem reparava, achava que eu fosse como ele ...capaz de dividir... Depois eu dizia que não achava certo aquilo todo dia, que os outros iam acabar quebrando tudo! E ele respondia: “Se quebrar, conserta!” E eu ficava com a cara amarrada, ele fingia que não via...mas, às vezes, dava uma baita bronca!     
         Como teve uma infância de muitas privações, meu pai achava que eu não podia reclamar, pois alguém com uma infância sem fome e com saúde tinha motivo de sobra para ser feliz.
- Lembro que com uma das crianças que entravam na máquina ele era especialmente atencioso e até comprava balas pra ela!RRRRaiva! Ele sabia o sabor preferido do pirralho e eu tinha certeza de que não sabia do que eu gostava! Quanta injustiça, meu Deus! Eu pensava... Quando eu via aquilo, ia como um foguete pra dentro e ficava de cara amarrada!
- Nossa, mãe, por que não falava pra ele?
- Nunca fui de falar, sabe filha, ficava guardando a meus sentimentos com um certo prazer...difícil explicar...mas ainda bem que algumas coisas eu não dizia, pois hoje morreria de arrependimentos...a palavra dita não se apaga!
            Meu pai tinha um carinho especial com os mais pobres e necessitados do que nós, era como se ele tentasse resolver algo difícil de sua infância, em que não era assistido. Fazia aos outros o que gostaria de que tivessem feito a ele.
- Seu avô não usava a máquina só para diversão, sempre que alguém passava mal, vinham pedir socorro, porque era um dos únicos da rua a possuir um veículo e o único a possuir um veículo que era mágico, uma máquina que virava ambulância e a todos socorria, nunca ouvi seu avô reclamar ou dizer que não dava para levar. Ele tinha prazer em ajudar, dava para ver no rosto dele, e daí eu não reclamava, ficava com vontade de ir junto e ajudar também.
Em uma noite, enfim, pude entender melhor um monte de coisas que seu avô fazia e a grandeza que ele tinha! Aprendi também que ele era encantado, profundo e por isso tinha o direito de ter uma máquina daquelas! Nunca mais vi uma igual... Era um presente dos céus para ele poder se divertir e fazer o que mais gostava: ajudar os outros, não importava se eram da família ou não. Ele amava todas as pessoas, principalmente, as que o deixavam falar e contar suas histórias e rir sozinho delas...
- Mas o que foi, mãe, que seu pai fez?
- Então... bateram palmas e gritaram o nome dele, a voz soou angustiada, doída...Fui atrás dele e vi que era a mãe daquele garoto de quem eu sentia ciúme...o das balas... Parecia que alguma coisa séria tinha acontecido, ela o tinha nos braços todo molinho, parecia sem vida... Naquela hora já senti um aperto bem fundo que eu não sabia o nome, mas hoje eu sei: arrependimento.
- O que ele tinha?
- Não sei o que era exatamente, mas fiquei sabendo pelos outros vizinhos que era incurável e que precisava de tratamento contínuo, acho que tinha algo a ver com falta de açúcar no sangue, pelo que me lembro... Daí, fui entendendo tudo!
Não me esqueço do ar de desespero dele ao ver aquela cena, pegou o menino dos braços da mãe com todo cuidado e disse que ia ficar tudo bem, colocou o menino na máquina azul de sonhos e saiu voando... Chegou bem mais tarde, com ar cansado, mas ainda assim perguntou se eu queria ouvir uma história... Respondi que sim, sem me importar com o cansaço dele, pois queria era estar e contar com ele, assim como os outros.
Neste dia, aprendi mais algumas lições que ele não precisou explicar: meu pai era um herói e, como tal, não podia cuidar só de mim, tinha responsabilidades com todos os que precisavam, gostassem ou não dele! Ajudava até os que o chamavam de mentiroso... pessoas limitadas que não entendiam as verdades inventadas dele! Aprendi o valor da caridade, do amor ao próximo, do desprendimento e do exemplo. Aprendi o porquê de dizerem que um exemplo vale mais do que mil palavras...
- Mãe, meu avô vivia pra lá e pra cá, não ficava com você nunca?
- Seu avô era como um pássaro que deixava o ninho, mas não se esquecia de voltar quando era preciso, sempre que podia me levava para alguns voos também, mas preso em casa não conseguia ficar! Não parava quieto, se quiséssemos estar com ele, precisávamos ir atrás, como todos daquela rua.
- Queria que ele estivesse vivo ainda, mãe ... Seria legal nós três juntos na máquina dos sonhos, eu ia pedir muitas histórias...
- Às vezes, sinto que ele volta para ver se está tudo bem no ninho... e tenho certeza de que você seria uma das tripulantes que ele levaria no compartimento da frente da máquina, pra ficar mais fácil de contar todas as histórias que moravam nele e as que brotavam sem parar!